22 de janeiro de 2012

ACOLHER, PRA QUÊ?


A lei universal, que estabelece a existência dos fenômenos, que conhecemos, desde os visíveis até os não - visíveis, para os nossos olhos, tão míopes, não afere o grau de importância daqueles pelas devidas ocorrências às quais estão sujeitos, sejam os de natureza física ou espiritual, e os que adormecem no mistério insondável de nossa vã compreensão. Assim, a despeito da observação posta, cumpre notar que, em geral, o ser humano tende a superdimensionar os eventos, que raramente acontecem no mundo, considerando-os, desse modo, especiais, mais importantes  que os demais; e, por conseguinte, vitais, em detrimento de outros, que, por serem fatos que estão presentes no cotidiano de todos, são, lamentavelmente, vistos como algo desprovidos de qualquer importância. O incomum não está em posição de supremacia em relação ao comum, mas, afirmativamente, o oposto.




Esta é a estória imutável do óbvio, que, por sua singularidade, que é o amálgama unindo a sua essência à existência do ser humano, emerge como elemento comum e revela o traço do incomum do que é; do que tem de ser, implacavelmente; coluna de sustentação da realidade, e que suporta a estrutura primordial da vida. Assim, é o nascimento dos seres e seus desaparecimentos inevitáveis; a maternidade, por exemplo, cujo fenômeno se dá de forma ininterrupta; o dia e a noite em suas trajetórias cíclica e eterna; a luz e a escuridão; a palavra decifrada e a mensagem velada. Mosaico complexo e absolutamente ímpar, que define o contorno a desenhar o traço do Humano - no risco do ser na terra -, e que move seu coração para a sua verdadeira vocação: a prática eloqüente e inquestionável da CARIDADE. 




A caridade tem, na obviedade de sua função, o traço distintivo e inconfundível, que a torna diferencial no universo das atitudes que as pessoas de bem-querer devem ter para a efetivação da prática do doar-se, de forma integral. Ser caridoso, neste sentido, não é um estado de ser, mas, antes, é uma condição inerente a todo ser humano, que, mais do que se predispor a ajudar àquelas pessoas que necessitam de auxílio, em sentido amplo, é, acima de tudo, o despertamento à consciência sobre algo que, infelizmente, está adormecido nos milhões de mentes de muitas pessoas que sequer pensam sobre a prática do Bem em sua concretude. Corpos movidos pela vaidade crescente por uma busca desenfreada de si mesmos; olhos voltados para um interior vazio e apodrecido de valores quando muitos necessitados e aflitos clamam por um pedaço de pão para matar a fome ou um pouco de água para matar a sede.




O senso comum fossiliza um equívoco que precisa ser reparado. Qual seja: o de que alguns seres, vistos como entidades iluminadas, nascem e são dotados de um poder especial para fazerem o bem em detrimento da maioria, que, por sua vez, é destituída de tal estado prodigioso; o que, em análise final, é uma falácia, pois todos são iguais perante às leis da vida, a Deus, caso as pessoas acreditem na existência de uma inteligência superior que criou a tudo e a todos; e, principalmente,  porque qualquer um pode e deve fazer tudo que esteja relacionado à prática do Bem. Assim, a ideia de que poucos podem e muitos não podem, ou de que poucos foram chamados para o exercício da prática do Bem, é, definitivamente, uma sentença falsa, e que, em última análise, atende a interesses escusos daqueles que investem na continuidade da desgraça batendo à porta dos milhões de desamparados e relegados à margem da exclusão social, em todos os sentidos, se é que existem portas para estas pessoas abrirem, pois fechadas estão há muito tempo para estes que não têm direito ou que jamais tiveram direito a um teto, a um prato de comida e muito menos à dignidade - o maior bem que alguém pode gozar aliado a um nome: à cidadania, em sua forma verdadeira e eficaz.




O sentido do acolhimento e, claro, a ação do ACOLHER, em amplitude máxima, resgata, para além da identidade perdida daqueles que estão excluídos do código social, o sentido de humanidade que pensamos trazer em nossas consciências, mas que, paradoxalmente, flutuam ao sabor das marés das conveniências devido ao jogo palaciano das máscaras, no qual, invariavelmente, estamos todos envolvidos, e pela hipocrisia, que impera na sociedade cruel que diz praticar o bem, mas que opera a inversão dos valores que deveriam ser outros. A prática do Bem, em verdade, não dista da sociedade, antes é parte inerente de todos os componentes sociais. O jogo tensional, provocado pela falta de humanidade ou pela desumanização das pessoas, que foram tragadas pela dita sociedade de consumo, prova o quanto estamos presos a regras que, em estágio final, determina o grau do adoecimento e da perdição progressiva e monstruosa que nos acomete de forma insidiosa.




Acolher o outro: pra quê? A  indagação que intitula este texto é, de forma inconteste, uma confissão coletiva de um ato que deveria ser praticado por todos, sem exceção, e que denuncia a omissão da maioria das pessoas, senão de todas, que deveriam fazer alguma coisa para minimizar os efeitos danosos sobre o outro não - assistido, e que é tão ou mais humano que todos nós, que desfrutamos do dito bem-estar social - cenas dantescas de uma civilização predatória, que sobrevive às custas das mazelas alheias. O princípio do altruísmo ou a busca por um mundo mais igualitário emerge desse questionamento desnecessário, pois a noção fundamental, que leva um grupo social, engajado em ações similares, visando o acolhimento dos aflitos, é a fagulha a incendiar corações, nações e o mundo em prol do verdadeiro sentido de coletividade, que é o da repartição justa do pão com aqueles que mal sabem o que é migalhas, pois nada lhes sobra para  o  sustento e o direito à sobrevivência.




A inconsciência e/ou falta de instrumentos daqueles que estão mergulhados em uma miséria sem fim é mais legítima do que a consciência e o aparato que os ditos favorecidos dispõem, mas que não são utilizadas nem para o fim ao qual se destinariam ou, no pior dos mundos, se descartam pelo ato condenável da omissão, que, por força da egolatria, nos mantêm, consistentemente, na zona de conforto. Eis aqui, portanto, o ponto de estrangulamento, que constrange a ação da prática do Bem, em sentido genérico e específico: há um fosso terrífico que nos abisma diante de nossa face torpe, e que nos pressiona contra a humanidade que afirmamos cientificamente ser, mas que apenas temos. Temos a humanidade, mas não somos a humanidade. Somos a própria desumanidade, deflagrada pelo impulso nefasto do egoísmo, que nos distancia uns dos outros, e que, como num ritual de pura selvageria e barbárie, produz, em nossas mentes coletivas, sociais, civilizatórias e destruidoras, a equação instantânea de eliminação do outro, em cadeia, revelando, desgraçadamente, a nossa bestialidade, a nossa perversidade e a nossa mesquinhez. 




A função do acolhimento do outro é, para além dos questionamentos de ordem ética e religiosa,  respectivamente, um preceito moral e pedagógico. A consciência que devemos ter, de forma uníssona, sobre o comportamento didático diante da vida que temos e daquela que queremos ter, para todos nós e para as gerações futuras, é um problema de natureza didática. Os ensinamentos crísticos, antes de serem entabulados como mandamentos espirituais, em verdade, são determinações de cunho didático, pedagógico e, em análise final, construções lógicas acerca da realidade como se apresenta para os favorecidos e desfavorecidos. Não há véus que encobrem ou sofismas que camuflam a verdade que paira sobre os que necessitam de amparo. Não há, também, falseamentos que impedem as pessoas, que se proclamam dadivosas, a praticarem o Bem, no sentido messiânico de sua constituição: pleno, único, imutável e, portanto, universal.




A prática e as ações oriundas do ACOLHER impõem uma regra transparente e inviolável. A saber: ou acolhemos o Outro, em seu estado precário de sobrevivência, de corpo, alma e coração, ou perderemos a oportunidade de aprender os ensinamentos que Cristo transmitiu a toda Humanidade, e, para o nosso infortúnio, engrossaremos a fileira dos hipócritas, que, efetivamente, padecerão com a destituição da Graça; e, errantes, caminharemos pela vereda hedionda da desgraça; um caminho somente de ida; um caminho de dor, um caminho sem fim.